quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Gostinho de guaco


Meu avô materno era uma figura! Alto, esguio, ereto, olhos azuis profundos, cabelos totalmente brancos. Mostrava ter sido um jovem muito atraente.
A primeira vez que fui a Teófilo Otoni, sua cidade natal, fiquei deslumbrada com a vida que lá se levava. Eu, menina criada em apartamento, no Rio de Janeiro, encontrava-me num sobrado enorme, na Rua das Flores. Era um tradicional sobrado mineiro, com quartos amplos, cozinha enorme, varanda e quintais. Sim, quintais no plural! Eram cinco quintais, um atrás do outro e o último acabava na margem do rio.
Como foi diferente e deliciosa a experiência de comer uma goiaba sentada na árvore e podendo me lambuzar à vontade!
Essa temporada de férias me aproximou de uns primos que pouco via, mas que logo ficaram amigos. Brincávamos o dia todo, ora na casa de meu avô, ora na casa deles, onde também havia árvores para subirmos e explorarmos os frutos.
À noite, era hora das estórias de cavaleiros e guerreiros, que meu avô contava com detalhes, praticamente atuando, como se estivesse no teatro. E eu viajava por aqueles lugares imaginários como se, na realidade, lá estivesse!
Meu avô era maçom e isso fazia com que o víssemos de um modo misterioso. Meus primos e eu fizemos o possível para conseguir saber alguma coisa que fosse a respeito da maçonaria. Mas que nada! Meu avô enrolava e dizia que não podia falar porque mulher não guardava segredo; por isso mesmo não havia mulheres na maçonaria. Tentamos convencê-lo de que, se fosse uma coisa boa, não haveria motivo para ser guardada em segredo. Nada! Desviava, mudava de assunto e... ficamos sem saber o que era e o que ele lá fazia.
Foi uma pessoa muito importante para a cidade, pois foi ele quem conseguiu colocar luz elétrica lá; e era muito querido por causa disso.
Anos depois, ele e minha avó mudaram-se para o Rio e, antes de se instalarem definitivamente, passaram uma temporada lá em casa. Casa de mineiro é assim mesmo; sempre há alguém hospedado ou que chega de repente para almoçar ou jantar.
Como era divertido escutar minha avó chamar o marido de “seu Chico”!
Fiquei sabendo que ela nunca tomara conhecimento de quanto ele ganhava, se havia contas a pagar, se havia dinheiro no banco... nada! Era só pedir “Seu Chico, dinheiro para o verdureiro. Seu Chico, dinheiro para o leiteiro.” e por aí afora. Não é de admirar que tenha morrido com 96 anos e ainda com alguns cabelos pretos. Pudera! Que preocupação tivera, a não ser parir e criar os filhos?
Ainda trago comigo o cheiro do cigarro de palha de meu avô. Era um ritual minucioso. Cortava o fumo com o canivete, abria a folha de palha, colocava o fumo e ia enrolando meticulosamente. Depois, era outro ritual para conseguir acender, pois acendia e apagava, acendia e apagava... até que ficava aceso!
Enquanto morou lá em casa, ia à cidade uma vez por semana para comprar os apetrechos para seu cigarrinho. E quando voltava era uma delícia! Sempre trazia umas balas de guaco, que eu adorava e que ia economizando para que durassem até a outra semana.
Que saudade daquele gostinho de guaco!

domingo, 27 de dezembro de 2009

Escutar ou não escutar?


Minha avó paterna era tão vaidosa que nunca deixou nenhum neto chamá-la de vó; era a Dinda.
Dinda ficou viúva muito cedo, aí pelos seus 30 e poucos anos, com 3 filhos e já grávida novamente.
Meu avô, um oficial de marinha, havia morado na Inglaterra com a família, por uns anos, acompanhando a construção de um navio. Estava trabalhando na base naval do Ladário quando faleceu. Seu melhor amigo, num acesso de loucura – coisa que só foi esclarecida mais tarde - deu um tiro no meu avô. Saiu do navio correndo. Foi para sua casa. Suicidou-se, incendiando a casa.
No meu imaginário de menina, essa história ganhava matizes de romance, de filme. O orgulho que meu avô despertou em mim, orgulho de herói, sempre me acompanhou.
Meus avós viveram uma curta, mas muito intensa, história de amor. Ele viajava sempre e, naquela época, o único meio de comunicação era a carta. Essa ia e vinha, quase que diariamente, onde quer que ele estivesse. Quando minha avó morreu, já havia pedido para minha prima que a enterrassem com as 2000 cartas que guardava em uma caixa linda que a gente não podia tocar; só olhar!
A caçula, que nasceu alguns meses depois da morte de meu avô, tinha o meu nome. Dizem que era muito inteligente, à frente de seu tempo. Estudava odontologia. E, destino cruel, se apaixonou por um homem casado. Não se concebia isso, então. Sem nenhuma alternativa honrosa, sem conseguirem romper o relacionamento e sem que ninguém soubesse, decidiram fazer o que para eles era a única saída. No dia de sua formatura, após a festa, engoliu um comprimido de cianureto, enquanto ele fazia o mesmo em sua casa. A Dinda nunca soube disso e, muito menos, da carta de despedida pedindo desculpas que a filha havia deixado para a mãe.
Como gostaria de ter conhecido minha tia e xará!!! Durante muitos anos de minha adolescência, cheguei a ter raiva dela ter se matado, sem ter me dado a chance de conhecê-la. Já mulher, consegui entender e até mesmo partilhar seu drama.
Muitos anos depois, meu pai trouxe a Dinda para ficar uns tempos com a gente no Rio. Dinda tinha todo um ritual para se arrumar. Ela mesma fazia um creme, talvez o que se pudesse chamar de base. Era uma receita toda misteriosa que ela só dividiu com minha mãe. Elas iam para o fogão e ficavam horas mexendo um panelão, onde se via um líquido grosso bem branco. Depois de frio, era hora de encher os vidrinhos. Curiosa, como sempre fui, fiquei sabendo que não podiam ser vidros grandes, pois o creme precisava ser logo usado para não se solidificar rapidamente. Então, antes de usar, tinham que chacoalhar bem o vidro para que o creme branco depositado no fundo se misturasse àquela água turva acima dele.
Dinda ficava um tempão em frente ao espelho da pia do banheiro. De um lado, sua caixa mágica de papelão, onde eu encontrava milhares de novidades. Do outro lado, um cinzeiro com seu inseparável cigarro. Para meu pai parar de aborrecê-la com o cigarro, e as manchas amarelas nos dedos, ela desenvolveu um truque: segurava o cigarro com um grampo de cabelo e, assim, não manchava mais os dedos. Fumou até morrer sem qualquer problema.
Mas, voltemos ao espelho da pia. Chacoalhava o vidrinho do creme branco e pegava um chumaço de algodão, que embebia no creme. Ia espalhando sobre o rosto enrugado com uma precisão matemática. A pele ficava bem clarinha, toda por igual!
Aí, passava para os cabelos, que eram finos, já escassos e totalmente brancos. Desbastava-os, para dar mais volume, e ia ajeitando e prendendo com uns pentinhos pequenos e curvos também brancos – para não aparecer, é claro! Um batom bem claro finalizava a sessão.
Que saudade de tudo isso! Como era bom ficar lá admirando aquela pessoinha – ela era tipo mignon – tão sofrida e tão meiga ao mesmo tempo. Ela tivera uma vida bem dura depois que meu avô morreu. Criara os quatro filhos comandando uma pensão, por onde passaram ilustres figuras do cenário político do país.
Dinda era surda e usava um aparelho complicado. Não havia esses pequeninos que quase nem se vê. O dela tomava conta da orelha, e dele descia um fio que se ligava a um estojo – parecendo um celular grosso – que ela prendia na frente do vestido.
Era muito engraçado vê-la ao telefone. A parte que ficaria no ouvido ficava em frente ao estojo e o bocal ficava para cima, onde ela falava!
Às vezes não respondia, quando a chamávamos. Consegui descobrir que fazia isso de propósito. Quando estava cansada do barulho – havia muita estática – simplesmente desligava o aparelho, e ficava em paz. Já no fim da vida, motivada por meu pai, tentou uma operação que lhe devolveu a audição. Glória! Morreu escutando!
Fico a pensar se não teria preferido continuar com o aparelho, para poder desligá-lo de vez em quando...
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